EU TRADUTOR, TRAIDOR
Não me dói o que de mim perdi.
busco, não o encontro, mas recolho
sua exaltação, não mais
que a memória alumiando
quando já não regressa:
fogo hibernal que se mantém do frio.
Relanceio o que toquei não sendo meu:
palavras,
cicatrizes indefesas
numa boca, num lugar, numa data.
Amei-as sem lucidez,
Profanação?
A quem prestarei contas?
Muitos
reivindicam o que é seu, e transmutei
sem consciência, com avidez tão cega
que não soube transmitir sua inteireza,
ufano ao supor reter seu fundo aroma.
Dissipei tanto fulgor alheio
ao querer dá-lo qual me pertencesse,
sem o remorso e a vergonha
de o oferecer como se não o tivesse magoado.
JOSÈ BENTO (1932) in “Alguns motetos”
(selecção e prólogo de José Tolentino Mendonça)